"Florbela" de Vicente Alves do Ó (por: Ana Carrilho)

Florbela
“Eu sou a que no mundo anda perdida,
Eu sou a que no mundo não tem norte”
Começa assim o retrato intimo de Florbela. Uma mulher forte e ao mesmo tempo tão frágil.
Florbela Espanca que foi uma figura marcante da língua portuguesa no século XX, ressuscita em Dalila Carmo no novo trabalho de Vicente Alves do Ó, produzido por Pandora Cunha Telles.
É merecido o reconhecimento de Vicente, justificando o prémio vencedor de realizador e melhor filme.
Dalila Carmo recebe o prémio validado como melhor actriz. A sua interpretação é altiva. Convence-nos que ela é aquela mulher emancipada e sofrida, sempre em conflito com o exterior, chocava as gentes do seu tempo, com a sua personalidade destemida e determinada. A viver num Portugal conturbado com um plano político conservador e de preconceitos, Florbela é considerada inimiga do Estado Novo.
Ousou nas relações que tinha com os homens, casou e descasou e foi a vida toda vítima de uma paixão impossível de revelar ao mundo. Só nos seus poemas e no seu intimo, escrevia e sentia, com toda a essência, beleza e subtileza nas palavras, umas vezes mais descontente e em outras a flutuar. “Escreve...” Dalila tem de escrever, é nesse momento que vive, que ganha mais lucidez e encontra o norte. E no seu mundo neva, e esvoaçam folhas de papel com os seus sonetos.
Nos braços do homem que a ama demais, Mário Lages (Albano Jerónimo) Florbela procura um abrigo para recuperar a vontade de escrever, depois de fugir de uma sufocante relação com António (José Neves). Àquela vida provinciana em Matosinhos, com a sua personalidade não se adapta. Sem escrever e queixa-se “o mar nunca se cansa”. Florbela tem intenção com estas palavras de transmitir que a sua cabeça é que não descansa, instável e perturbada.
Com a chegada do seu irmão (Ivo Canelas) a Lisboa, Florbela regressa também à capital com ânimo e com sede de inspiração. A cumplicidade entre os irmãos é transparente, obsessiva, um não suporta estar sem o outro. A dependência emocional entre os irmãos quase não deixa respirar e alimentam um cenário tenso disfarçado de convívios, gargalhadas, ritmos e baladas.
O filme não conta toda a história de Florbela,mas aquele tempo, e aqueles momentos, onde mais ou menos estável, ela sobrevivia e jamais a sua obsessiva paixão em toda a trama esquece.
A relação dos dois irmãos ameaçava o casamento de Florbela com Mário,e também o comportamento bipolar da poetisa em de mudar de norte. Mário Lages, o esposo frustrado por não receber o mesmo amor que dá, conformado com os devaneios de Florbela, aceita estar sempre por perto. Florbela não consegue ser feliz a seu lado. Tem medo. “ Não tenhas medo, o amor só é amor quando se perde o medo” recita o seu irmão antes de partir “e escreve”...as suas últimas palavras.
Ainda por salientar a actriz Rita Loureiro elegante e ousada, num papel de uma feminista, cujas suas frases são espelho do país naquela altura “Este país só ama fantasmas e alucinados”.
Na sequência, Florbela entra num beco com um desconhecido, renuncia a sua moralidade. Essa cena muito se assemelha ao erotismo da escritora Anais Nin.
A escapar da vida e ir rumo ao rio Tejo, é das cenas mais marcantes e bem conseguidas, quer pela sua interpretação e de Albano, quer pela fotografia. É perturbador demais o estado de saúde mental com que fica Florbela depois desse momento, que a nós espectadores, deixa-nos sufocados. Dalila consegue incomodar o espectador a dançar a sua valsa atroz e incontrolável, nas águas do rio Tejo.
Florbela diz “ eu não sei viver pai” tenta por termo à vida e é seu pai que a salva. Depois da morte do seu irmão, Florbela não tem mais aquele sopro que a resgatava para escrever e sonhar com o seu mundo imaginário, preenchera-lhe um vazio e o seu sofrimento ganhara uma amplitude maior. Chorava convulsa noite e dia. Tantos anos em sofrimento, tenta por termo à vida uma terceira vez e consegue-o. Descansa a sua alma aos 36 anos.
Enquanto escrevo revejo o filme. Fui conquistada pela interpretação de Dalila, e não cansam os meus olhos de reverem a beleza estética da fotografia, que ganha a mesma proporção que a interpretação da actriz.
A música da autoria de Pedro Janela e Guga Bernardo é soberba e de uma fatalidade emotiva e o guarda-roupa da época é estonteante e vislumbre.
Dalila e o papel da sua vida, consegue imortalizar a identidade desta mulher para os nossos dias, para quem já havia esquecido “a mulher que tinha sede do infinito”.