"Roberto Zucco" - Encenação Mário Trigo (por: Ana Carrilho)

 

Mário Trigo traz-nos ao palco uma narrativa cheia de mistérios e de relações humanas, adaptada de uma obra do autor francês, Bernard Marie Koltés, que a escreveu em 1988 inspirado num personagem real, Roberto Zucco. A peça original é respeitada.
O encenador demonstra sensibilidade e responsabilidade estética,servindo-se das possibilidades cénicas e os actores veemente viveram a história como se de suas vidas se tratassem.
Roberto zucco é apresentado como um assassino logo no ínicio quando mata o pai e a mãe. Não obstante, não deixa de ser uma figura solitária, inteligente, reservada e indiferente. Zucco mata por ter medo da sociedade, aterrorizam-no as pessoas. Zucco teme a morte e sabe que ela chegará embora ele não o deseje. No seu roteiro parece que vai de encontro a ela.
A plateia acompanha o roteiro deste herói versus assassino num universo de promiscuidade, com imensa vontade em viver. Interpretado pelo actor Pedro A.Rodrigues, corre sobre os telhados e surge em cenários imprevisíveis em fuga.
Foge e regressa a casa. A mãe recebe-o, mas teme-o, e irritada responde-lhe " Para mim vales tanto como um rato de esgoto" "Ainda estou de luto pelo teu pai e já me queres matar" Zucco repete vezes seguidas "Eu preciso da minha farda” ,“Mama esquece. A farda mesmo que esteja suja e desarrumada" A mãe continua: "A cor dos teus olhos, dos teus cabelos...quem atirou uma casca de banana para escorregares para o abismo" Zuco termina por estrangular a mãe num momento em que aproxima-se mais dela e lhe dá um beijo. Veste depois a farda estilo militar.
No primeiro acto é nos apresentado um olhar sobre o roteiro do Roberto. No segundo acto, uma aproximação entre o personagem Zucco e o assassino Zucco. Em outro acto, uma análise aos personagens e aos grupos aos quais pertencem, no espaço e no tempo.
Todos os personagens são constantemente colocados na mesma posição que Roberto, todos pecam e outros vivem amedrontados. Dirigem-se fortemente á sociedade, e as fraquezas humanas sempre fracassam.
No seio familiar, 3 irmãos. A mais nova, uma menina que se opõe a imagem de pura e inocente, com intenção de experenciar e de ganhar a sua independência. Revoltada por a tratarem por nomes de aves " pomba, rouxinol..."
A moralidade e o bom comportamento, a devoção e obediência, é importante para esta família. O envolvimento da menina com Zucco quebra todos estes príncipios e a desgraçada cai sobre toda a família. Através de um acto neurótico a irmã mais velha atira uma jarra para o chão e a quebra em pedaços, diz que os pedaços não se podem colar, como estes valores também não podem ser recuperados. Este personagem revela-se o personagem mais forte na família e o seu fracasso só surge quando ela perde a sua irmã para sempre pois a, pomba é a razão da sua existência.
Com intuito de proteger-se e proteger a sua pomba ela refere-se ao homem muitas vezes como uma besta, uma figura suja e pecaminosa, grotesca e obscena. A irmã tem de se proteger, não vá ser beijada por um qualquer idiota. "Minha pequena pomba..."
A inocência da pomba termina quando esta perde a virgindade para Zucco, onde em muitas cenas são o centro da história, e tudo gira á volta desta relação que para ela existe e a ele o sufoca. A pomba envolve-se com Zucco para fugir da dependência obsessiva por parte da família. Ambos ficam cúmplices um do outro, ela por lhe ter dado o que tinha de mais precioso e ele por lhe revelar quem é "diz-me o teu nome, eu sei guardar segredos" “toda a gente me trata por ave" "E o que fazes na vida, profissão e aquilo que toda a gente faz? " " Eu não faço o que toda a gente faz” Zucco responde.
A rapariga sai de casa, rompe com o elo familiar e procura Zucco em cenários decadentes, tornando-se prostituta e acabando subjugada pela Madame de uma casa de prostitutas e por um chulo.
O personagem do irmão mais velho, com um perfil agressivo, também a protege até ao momento em que ela rompe com os príncipios da sua família, tradicional e conservadora. Ele passa a não ve-la mais como uma irmã, mas como uma mulher comum. Para ele é indiferente o seu roteiro " já não tenho de te arrastar como se fosses a minha cruz" e é o irmão que a encaminha para cenários decadentes como as ruas e a casa das prostitutas e a vende como mercadoria a um chulo. Fragiliza quando a vende, chora e lamenta justificando-se que a culpa foi dela.
Ainda dentro da família uma mãe e um pai, onde reina a violência aparentemente “a vossa mãe escondeu a cerveja...vou enche-la de pancada todos os dias á mesma hora" Estes personagens saiem e entram de cena, passam discretos, não chegam a ter influência em nenhum momento na história.
Um senhor de idade que dialoga com Zucco numa estação de comboio, "se calhar estou só à espera do amanhecer, os dias não devem alternar com as noites, como antes" Ele compara Zucco a si, como um homem comum que descarrilou também. Zucco sai do trajecto normal quando comete actos violentos. Deseja ser invisível, mas é impossível, pois acaba sempre por matar e ficar manchado de sangue.
Roberto Zucco retorna ao cenário de promiscuidade, de um ambiente confuso de desejo, da violência, do tráfico, do sofrimento, do negócio do sexo e da inocência perdida, onde antes havia assassinado o inspector.

A polícia é declarada com pouco eficiência e incapaz de evitar a fuga de Zucco. No primeiro acto dois polícias estão em vígilia e conversam sobre o ofício. Um acha que é util e o outro acha que é uma perda de tempo estarem de vígilia a noite, quando podiam estar a dormir “não ouço nada porque não há nada para ouvir, não vejo nada porque não há nada para ver.” Estes dois polícias abrem o enredo.
O que sabemos de Zucco? Um amigo, um agente secreto ou uma besta, um idiota ou um assassino. É um personagem com facetas contraditórias, da besta para sedutor, do uso de palavras poéticas para uso de raciocínio mais simples. Zucco é também um personagem real e imortalizado com intuito e desejo em ir para a África ver neve e rinocerontes a que ele muitas vezes se compara, pela força a calma e o silêncio. O seu comportamento era docil, discreto e cortês com as mulheres, em momentos de fúria cometia atrocidades e actos violentos. A angústia de Zucco está patente quando ele diz que homem e mulher não se amam mais, que apenas precisam um do outro.
A menina que se envolveu emocionalmente com Zucco, quando o denuncia á policia conduzida forçosamente pelo seu irmão, não se quer lembrar do seu sobrenome e comunica aos policias que assemelha a algo como doce e açucar. O polícia enumera varios idiomas, para se aproximar do verdadeiro apelido. Zuchero em italiano aproxima-se de Zucco, e logo de seguida ela recorda-se do seu apelido.
Um outro personagem, já perto do final é a Madame no jardim, no papel da burguesa infeliz que não ama o marido e aproxima-se de Roberto para encontrar consolo. O seu filho surge e os 3 são alvo de comentários e olhares de outros que aparecem no jardim. Zucco acaba por matar o filho da mulher que sequestra. Por vontade dela, decide partir em fuga com ele, mas ele rejeita-a. Nesse momento a mulher sofre uma transição, de mulher indiferente ao marido e ao filho, demonstra tristeza pela morte do filho, mesmo que o considerasse um idiota, ele era a única coisa que lhe restava.
A peça vem acompanhada com uma corrente simbolista. Logo no ínicio alguns actores em palco, e uma maça em cima de uma mesa. Cada um a morde e quase a rasga ansiosamente, é o espelho do pecado que nos rasga e corrompe por dentro. Outra cena é a da bacia de água que a irmã da rapariga Pomba leva a uma prostituta, que depois lava a cara com essa água, como se esta água a purificasse e levasse o pecado de si. A água é símbolo de regeneração do corpo e do espírito.
A peça termina com a queda de Zucco como se de libertação se tratasse, redenção e fuga em direcção ao sol. O sol representa a expressão mais elevada do Eu, evoca vida e energia, vitalidade e força de espírito.
A peça pela encenação de Mário Trigo, com os actores, André Filipe, Andreia Lima, Andreia Susano, Beatriz Oliveira, Gonçalo Romão, Jaqueline Rodrigues, João Cruz, Patrícia Leal, Paula Pereira, Pedro A.Rodrigues, Pedro Pais, Pedro Paz, Rui Raposo e Telma Grova, esteve em cena no Clube Estefânia (Escola de Mulheres) nos dias 11, 12, 13 de Abril e ainda podemos ve-la nos dias 19 e 20 no Teatro Bocage e os últimos dias 26, 27, 3 e 4 de Maio no Centro Cultural Franciscano.